“Todo Dia a Mesma Noite: A história não contada da boate Kiss” é um livro-reportagem escrito pela jornalista brasileira Daniela Arbex sobre a tragédia ocorrida em Santa Maria (RS) na boate Kiss em 2013, que vitimou 242 jovens e feriu mais centenas, além de mudar completamente a rotina de uma cidade. A obra foi publicada ano passado (2018) pela Intrínseca e tem 248 páginas. Antes mesmo de começar a leitura, pelas lembranças que tinha do caso, já soube que seria uma leitura pesada e extremamente tocante. Logo que iniciei, até pensei em desistir, mas felizmente não o fiz. E apesar disso, nas primeiras páginas, fiquei um pouco frustrada com a narrativa e o desenrolar da obra. Como comum a qualquer livro-reportagem, cada fato e personagem era inserido juntamente com muitas outras informações, ao ponto de eu — acostumada apenas com livros literários — me atordoar e achar excesso de informações. E essa é minha primeira crítica: a autora demorou para pegar o ritmo da narrativa e conseguir fazê-la fluir. Foram vários capítulos, com dezenas de personagens — pais, jovens, médicos, de diferentes idades, profissões, cidades — que faziam diversas coisas e sempre de forma rápida e superficial. A narrativa não me tocava. As histórias das pessoas reais, contadas no livro, não me tocavam. Não havia nada que me emocionasse, era apenas a narração seca e sem floreios própria de uma jornalista (e não que estivesse errado, afinal era justamente esse o objetivo do livro, narrar o acontecimento jornalístico). Também, me chamou a atenção os diálogos irreais, simples e forçados, que além de, ao mesmo tempo não condizerem com a linguagem informal, típica das conversas do dia a dia, também simulavam um sotaque gaúcho caricato, exagerando na utilização do “bah”,  do “tu estás” e de outros regionalismos.

Apesar do começo lento, aos poucos Daniela vai retomando a história dos pais e dos jovens citados anteriormente, aprofundando suas histórias e sempre abordando seus passados e sonhos futuros. E não só deles, o livro conta também sobre alguns dos profissionais que atuaram  no acidente, principalmente os que tentaram salvar vidas — médicos, bombeiros, enfermeiros. Em alguns pontos, inclusive, a autora romantiza algumas atitudes, abordando sempre apenas os lados bons, altruístas e positivos dos envolvidos, sem dar margens pra mostrar personagens humanos. Principalmente dos que morreram. Todos eles eram perfeitos, bons filhos, bons estudantes, e com uma carreira de sucesso pela frente.
A primeira vez que me emocionei de verdade com o livro, foi a partir da página 140, quando a autora conta a história de Maria Aparecida Neves e o dilema dela ao ter que escolher a última roupa que o filho Augusto usaria em seu velório. A partir disso, a narrativa retorna dezenove anos no passado, fazendo um paralelo com a primeira roupa que ela escolheu para o filho usar: no dia em que foi adotado por Maria e seu marido. De família negra, pobre e evangélica, Augusto cresceu como o orgulho dos pais, sendo o primeiro da família a frequentar uma universidade e fazendo com que seus pais não medissem esforços para dar-lhe todo o necessário. O rapaz se formaria em 2017 e não era muito de festas. Sua mãe, inclusive, não gostava que ele frequentasse aquele tipo de ambiente, principalmente devido a religião deles. Mas, apesar disso, ela sabia que o filho estaria na festa aquela noite e até aprovava que ele se divertisse um pouco. Inclusive, depois, na narrativa do enterro do rapaz, há uma suave crítica quando um dos pastores chama o pai de Augusto e lhe diz que a morte do filho deles foi merecida, pois o garoto estava em um ambiente inadequado e pecaminoso. Há também no mesmo capítulo, outra história contada com base na escolha da roupa que a vítima vestiria ao ser enterrada. Lucas, um jovem estudante e amante das tradições de seu estado, que gostava tanto de andar pilchado que queria ter ido àquela noite na festa da Kiss usando bombacha, lenço vermelho e guaiaca. No fim, pra ir à boate, foi convencido a usar calça jeans e camiseta, mas em seu velório, satisfazendo o último desejo do filho, sua mãe o colocou a roupa gaúcha que tanto queria. As ligações das duas histórias com a vestimenta foi um dos pontos mais positivos que encontrei no livro, principalmente por mostrar um elemento simples e mundano, que naquela situação adquiria uma nova importância aos personagens.

Além desses há diversas outras narrativas que também me tocaram. Entre elas, a da mãe que perdeu a filha no incêndio e com isso além de perder parte de si e uma amiga, perdeu também a razão de viver, tentando cometer suicídio várias vezes, numa dessas vezes, inclusive, tentando matar a outra filha mais nova. E que posteriormente também enfrentou outras situações, como a morte do pai, um câncer da filha mais nova e até hoje tenta superar o ocorrido e seguir em frente, sem conseguir. Há também o caso dos pais que que estavam em outra cidade ao saberem da tragédia e  preocupados com as duas filhas que foram à festa, juraram a si mesmos que se elas tivessem mortas, ambos se matariam. Tem o caso do amigo que foi com outras quatro meninas — elas que permaneceram durante quase um dia inteiro na lista de sobreviventes, sem que as famílias pudessem encontrá-las, e que posteriormente foram encontradas todas mortas — e foi o único de seu grupo a sobreviver. Entre outros tantos casos. Sendo a maioria dos que me emocionaram, aqueles em que as situações condiziam com a minha própria realidade, quando eu conseguia me colocar no lugar dos personagens e imaginar algo semelhante. A narrativa tem algumas descrições e acontecimentos bastante fortes. Um dos que mais me marcou foi o de um rapaz que conseguiu sair da boate a tempo. Do lado de fora, ele desmaiou, mas logo recobrou a consciência. Ele não sentia dor, não se sentia mal, nem nada. Mas a pele de seus braços foi completamente desgrudada e ficou pendurada pelos pulsos, segundo conta o livro. Ele não reparou no que havia acontecido e insistiu em permanecer próximo da boate, pra ajudar no que pudesse, até que o obrigaram a ir até o hospital mais próximo. Lá, ele foi medicado e sedado, ficando em coma induzido por mais de uma semana e sendo transferido para o hospital de Porto Alegre, por ter mais de 40% do corpo queimado. Felizmente, ele sobreviveu, mas viveu anos de recuperação e de muita dor.
Além de todas essas histórias pessoais, o livro também aborda outros acontecimentos menores, como o dos militares que foram autuados por estarem  recebendo os corpos das vítimas, sem estarem devidamente fardados; o do comandante dos bombeiros que foi acusado judicialmente por ter permitido que quatro jovens retornassem à casa noturna, tentando ajudar no resgate, e nunca mais saíssem; o do funcionário de uma funerária que tirava foto do corpo seminu das mulheres mortas; o dos políticos que estiveram na cidade e foram ver e fotografar os corpos antes dos próprios familiares; o dos pais de duas vítimas que foram processados pela difamação de promotores que analisavam processos antigos da Kiss; entre outros. Obviamente, há também maiores detalhes da tragédia e do que a tornou ainda pior: na noite do dia 27 de janeiro, a casa noturna com espaço para pouco mais de 600 pessoas, abrigava quase mil. Todas as aberturas do local, à exceção de suas portas, foram trancadas para completa vedação acústica, impedindo a saída de ar; havia diversos guarda-corpos dividindo fluxos e áreas, que na hora da tragédia transformaram o local em um labirinto; as luzes sinalizadoras do banheiro que foram as únicas que permaneceram acesas e que fizeram com que dezenas de jovens corressem até o local e morressem confinados; os seguranças que no início do incêndio impediram que as pessoas saíssem por não terem pago suas comandas; e o mais grave de todos: a utilização equivocada de espuma de poliuretano de colchões na forração e isolamento das paredes, que ao entrar em contato com o fogo, produziu uma fumaça venenosa, apesar de inodora e invisível, que fez com que os presentes no local morressem em questão de minutos e praticamente com o mesmo gás que os utilizados no holocausto da Alemanha nazista. E além de tudo, a imprudência dos músicos da banda Gurizada Fandangueira que soltaram fogos de artifício externos, num ambiente interno e abarrotado de gente, provocando o incêndio. E também a falta de diversos alvarás e irregularidades em normas técnicas — entre elas a de prevenção contra incêndio.

E é por isso que um livro como esse da Daniela Arbex é importante. Ele não só dá nome e histórias às vítimas e famílias atingidas por essa tragédia, como também impede que elas sejam esquecidas. É preciso que se aprenda com os erros, fazendo com que acontecimentos assim não venham mais a acontecer ou que no mínimo estejamos preparados para eles. É imprescindível que se recorde a soma de fatores que tornou essa a segunda maior tragédia brasileira provocada pelo homem. Famílias foram destruídas, profissionais tiveram diversos problemas de saúde físicos e psicológicos e uma cidade inteira foi modificada, isso sem contar as centenas de vidas, sonhos e futuros perdidos. Para muitos, a dor do dia 27 de janeiro de 2013 não acabou e para nós é possível senti-la e recordá-la com o livro Todo Dia a Mesma Noite, que apesar de abordar situações tristes e dolorosas, tem uma escrita fácil, simples e rápida — considerando que você não precise parar para chorar a cada capítulo. Eu recomendo a leitura não só pela importância do fato abordado, como também pelos diversos conhecimentos a linhas de abordagem que ele traz e por ser um livro diferente do comum, que tem muitas chances de tornar-se uma obra emblemática do futuro do jornalismo nacional.