“O Talibã podia tomar nossas canetas e nossos livros, mas não podia impedir nossas mentes de pensar.” (Eu sou Malala – Página 156)
A frase acima, retirada do livro “Eu sou Malala” define bem a ideia principal da obra. Escrito em conjunto por Malala Yousafzai e a jornalista Christina Lamb, em forma de biografia e lançado em 2013 no Brasil pela Companhia das Letras, o livro conta a história da garota paquistanesa que lutou desde cedo pelo direito à educação e pelo direito das mulheres, e que aos 15 anos foi baleada na cabeça pelo grupo extremista Talibã e, ainda assim, sobreviveu. O livro conta desde o nascimento de Malala, sua infância comum até poucos meses após o atentado que sofreu, seu tratamento na Inglaterra e a adaptação à nova vida, longe de casa.
“Quando ouvia as histórias sobre as atrocidades que aconteciam no Afeganistão, eu celebrava o Swat. Aqui uma menina pode ir à escola, eu dizia. Mas o Talibã estava logo ali, na esquina, e era pachtum como nós. Para mim, o vale era um lugar ensolarado. Não puder ver as nuvens se juntando atrás das montanhas. Meu pai costumava falar: ‘Vou proteger sua liberdade, Malala. Pode continuar sonhando.’ ” (Página 17)
Malala nasceu no Swat, uma região do Paquistão, que ao longo dos anos foi tomada pelo Talibã. Seu pai era o dono de uma escola, e realizava seu sonho ao ensinar e mudar a vida de crianças com a educação, inclusive dando bolsas de estudo gratuitas a muitas delas e permitindo que meninas e meninos estudassem em um mesmo local. Mesmo no início da infância de Malala, na época ainda de calmaria, as mulheres não costumavam estudar. A própria mãe da garota era analfabeta. Já nessa fase, o pai de Malala era um defensor da educação para todos, e convencia as famílias a deixarem suas filhas frequentarem a escola. Apesar disso, as meninas e mulheres possuíam certa liberdade e podiam sair pela cidade sozinhas e sem estarem completamente cobertas. A elas também era permitido que estudassem e tornassem-se no futuro professoras ou médicas. Malala, entretanto, sempre sonhou em ser política e ajudar seu povo.
“Um homem sai pra trabalhar, recebe salário, volta para casa, come dorme — é isso que ele faz. Nossos homens pensam que ganhar dinheiro e dar ordens é ter poder. Não percebem que o poder está nas mãos da mulher, que passa o dia cuidando de todos e que dá à luz. Em nossa casa mamãe administrava tudo porque meu pai vivia ocupado. Era ela que acordava cedinho, passava nossos uniformes escolares a ferro, preparava nosso café da manhã e nos ensinava como devíamos nos comportar. Era minha mãe que ia ao mercado fazer compras e cozinhas. Tudo ficava a seu encargo.” (Página 126)
Mostrando os diversos percalços que a família enfrentou parar abrir uma escola e o dia a dia de Malala, o livro aborda uma menina comum, com pensamentos e desejos comuns, que pouco a pouco foi crescendo, amadurecendo e tornando-se uma pessoa consciente e ativa politicamente. Vemos uma Malala competitiva, que disputava ano a ano o troféu de melhor aluna da escola e chorava quando não ganhava. Vemos também suas diversas brigas com Molina (sua melhor amiga), a vez em que, ainda na infância, roubou algumas jóias de uma amiga porque não tinha peças semelhantes. Malala é uma menina como qualquer outra, que brinca com os vizinhos, briga com os irmãos, leva bronca dos pais e se diverte em passeios. Conhecemos sua cor preferida (rosa), sua dificuldade em matemática e a necessidade de estudar mais física, o desejo de impressionar o pai, entre tantas outras coisas.
Mas vemos aqui também, o crescimento do Talibã na região onde mora. Tudo inicia com um programa de rádio feito diariamente e que informa a população seus preceitos e seus ideias, dizendo o que é pecado, o que não é e como as pessoas deviam viver. Começa aqui a pregação contra a educação de meninas, o desejo de que elas fiquem em casa, se cubram e não cometam nenhum pecado. Aos poucos, vemos cidadãos seduzidos com a proposta de novo mundo islâmico e de jihad que o Talibã oferece. Conhecidos e até mesmo professores da escola do pai de Malala largam tudo para servir ao Talibã. Mulheres vendem suas joias e oferecem suas economias para financiar o grupo terrorista. E pouco a pouco ele vai ganhando importância e ditando as regras, matando aqueles que consideram pecadores e incorporando uma rotina de medo e violência à região.
Porém, isso não acontece sem resistência. Diversas pessoas tentam se opor ao grupo. Uma das principais sendo o pai de Malala, que começa a discursar a favor da educação e ao fim da violência em diversos locais e meios de comunicação. Muitas vezes, ele levava a filha junto e os jornalistas estrangeiros ficavam encantados ao ver uma criança e uma garota falando das proibições que sofria e ainda em inglês! (Língua que ela aprendeu na escola e com o pai.) E é preciso que se diga que Malala e o pai não estão sozinhos. Há diversas outras meninas, pais, filhos, famílias, professores e mulheres que lutam pela volta da paz ao Swat. Malala é apenas um reflexo do meio em que vive, sendo como diversas outras garotas da escola que também sonhavam grande e iam para a escola escondido da sociedade. Mas a família dela é o essencial para que ganhasse tanto destaque. Não só o pai, que sempre foi ativista da igualdade dos sexos e da educação, mas também a sua mãe, que apesar de analfabeta, sempre soube muito sobre a vida e sempre demonstrou ser uma mulher forte e decidida, que permitia que a filha se expusesse, quebrava algumas regras e viveu muito tempo enfrentando as ameaças à vida de sua família.
“Querido Deus Sei que o Senhor vê tudo, mas há tantas coisas que às vezes alguns detalhes podem passar despercebidos, sobretudo agora, com o bombardeio do Afeganistão. Mas acho que o Senhor não ficaria feliz se visse a maneira com algumas crianças da minha rua estão vivendo, num lixão. Deus, me dê força e coragem e me aperfeiçoe, pois quero transformar este mundo num mundo perfeito.
Malala.” (Página 98)
Após alguns anos, a situação do Talibã na região tornou-se insustentável. Muitos dos moradores locais já haviam ido embora ou sido mortos. Os que permaneciam viviam em constante medo e terror psicológico, tendo que obedecer às regras impostas pelos terroristas. Diversas escolas foram explodidas e, após um tempo, todas as que atendiam a alunas mulheres foram fechadas, incluindo a de Malala e seu pai. A família, então, teve que migrar e mudar para outras regiões, onde permaneceu por algum tempo, enquanto o exército enfrentava os talibãs e liberava o vale para que a população pudesse retornar. Demora alguns meses, mas eles enfim retornam para casa. O talibã foi derrotado e ninguém mais achava que eles demonstrassem algum perigo. Apesar disso, não é o momento de tranquilidade no Swat. Algumas catástrofes ambientais acontecem na região, entre elas uma enchente, que prejudica ainda mais a situação de um povo que tentava se reerguer. Mas aos poucos eles vão se recuperando e as coisas voltam a ser como antes, pelo menos superficialmente. Até as escolas são reabertas e Malala e as colegas podem voltar a estudar.
“‘A vida não se resume a inspirar oxigênio e expirar gás carbônico. Você pode ficar aí, aceitando tudo que o Talibã ordena ou pode resistir a eles.'” (Página 132)
Mas logo começam as ameaças à vida ao pai de Malala e à ela. O pai dela já sofria ameaças antes, mas agora elas tornam-se mais intensas. E ninguém acredita que os talibãs teriam coragem de matar uma criança inocente, como a garota. Mas apesar disso, ela é atacada e é baleada, juntamente com outras dua colegas. O disparo acerta Malala próximo à sobrancelha esquerda, sem atingir seu cérebro e a bala se aloja próximo ao seu ombro. Entretanto, a situação dela torna-se grave, estilhaços de ossos atingiram a massa encefálica e ela é operada. Na operação, realizada por um médico paquistanês experiente em operar militares feridos, parte do crânio é retirado, para que o cérebro possa permanecer inchado sem maiores problemas, e o pedaço do osso é guardado dentro da própria menina, especificamente, abaixo da pele do umbigo, onde poderia ficar armazenado e ser utilizado após alguns meses. Malala fica em coma induzido por algum tempo e, enquanto isso, ganha destaque na mídia internacional, tornando-se conhecida em todo mundo. Com isso, esforços se unem e a garota é enviada em estado grave para a Inglaterra, onde é tratada por especialistas e permanece por mais um tempo desacordada. Quando desperta, após semanas, encontra-se em um lugar desconhecido, com pessoas desconhecidas, sem sua própria família (que por burocracias, permaneceu no Paquistão por mais um tempo) e sem conseguir se comunicar com ninguém, seja por escrita ou fala. Mas aos poucos ela vai se recuperando, descobrindo o que aconteceu e recobrando a memória. Sua família também consegue viajar para a Inglaterra e acompanha o tratamento da menina, que passa por novas cirurgias, uma pra religar um nervo facial e recuperar o movimento do lado esquerdo do seu rosto, corrigir um problema de audição e colocar uma chapa de titânio no crânio (o pedaço do osso guardado não pode ser utilizado). Após isso, ela e a família permanecem morando na Inglaterra, Malala passa a conhecer e atuar no mundo todo, mas eles não conseguem retornar ao Swat, que é o grande sonho dela. (Pesquisando depois, descobri que ela conseguiu voltar e reencontrar amigos e vizinhos em 2018, mas como o livro foi publicado em 2016, isso ainda não havia acontecido).
“Comecei a entender que a caneta e as palavras podem ser muito mais poderosas do que metralhadoras, tanques ou helicópteros. Estávamos aprendendo a lutar. E a perceber como somos poderosos quando nos manifestamos.” (Página 167)
E pra finalizar, gostaria de dizer que “Eu sou Malala” é um livro inspirador e emocionante, uma das melhores leituras de 2019 até o momento, que mostra além de uma menina que lutava pela educação e pelo feminismo e tornou-se símbolo mundial, mostra uma garota humana e comum, como qualquer um e mostra como todos podemos fazer a diferença. Também, através do livro pude aprender mais sobre a região do oriente médio e seus conflitos, a formação de grupos terroristas e a influencia que os Estados Unidos tem na área e o quanto isso interfere a política externa deles. “Eu sou Malala” é um livro que rompe com os estereótipos dos muçulmanos, mostra que não devemos ter preconceito e que como qualquer outra, é uma religião que prega o amor e a paz, a igualdade, mas que acaba sendo interpretada de maneira equivocada e usada para fins não nobres. A própria Malala admite isso. Ela repete diversas vezes que em nenhum lugar do Alcorão há algo dizendo que as mulheres devam ser tratadas como inferiores aos homens ou servi-los, pelo contrário, o Alcorão prega que todos busquem conhecimentos, inclusive elas e sejam iguais. E é por isso que Malala luta.